Bem de família, gênero neutro e herança digital entre os destaques no direito privado

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Bem de família, gênero neutro e herança digital entre os destaques no direito privado

Tempo estimado de leitura: 11 minutos

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No campo do direito privado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou, ao longo de 2025, uma grande variedade de temas sensíveis, como o direito ao gênero neutro no registro civil, os limites da chamada "herança digital" e a dispensa de cobertura, pelos planos de saúde, para o uso domiciliar do canabidiol.

Outras decisões de muita repercussão envolveram adoção póstuma, transporte de animais em aeronaves e até a suspensão de um jogador profissional de Free Fire, o que ilustra a amplitude e a atualidade da pauta de julgamentos da corte. Dos sete temas julgados sob a sistemática dos recursos repetitivos, evidenciam-se as teses sobre impenhorabilidade do bem de família fixadas pela Segunda Seção.

Multa para pais que não vacinam os filhos e reconhecimento de adoção póstuma

Nos julgamentos envolvendo família, destacaram-se o princípio do melhor interesse do menor e os vínculos socioafetivos entre pais e filhos. Em março, a Terceira Turma estabeleceu que estão sujeitos a multa de três a 20 salários mínimos os pais que não vacinarem seus filhos contra a Covid-19. A relatora, ministra Nancy Andrighi, lembrou que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura de forma ampla o direito à saúde e estipula que a vacinação é obrigatória sempre que houver recomendação das autoridades sanitárias.

Nesse contexto, a ministra entendeu configurada a negligência de pais que se recusaram a vacinar a filha, e constatou, ainda, o abuso do poder familiar, uma vez que tal conduta viola o princípio da paternidade responsável e contraria o melhor interesse da criança.

Em agosto, ao validar a adoção de criança em favor de um casal, o colegiado decidiu que é possível o reconhecimento incidental de união estável na ação de adoção. A pretensão dos adotantes (um dos quais morreu quando o processo estava em curso) foi questionada porque não teria sido comprovada a união estável do casal e também por ter havido burla ao Cadastro Nacional de Adoção.

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva afirmou que, embora a ação de reconhecimento da união estável ainda estivesse pendente de julgamento, esse reconhecimento seria possível de forma incidental, apenas para fins da ação de adoção. O relator disse ainda que, apesar do desrespeito ao cadastro, a retirada da criança após mais de 13 anos de convivência com aquela família lhe causaria enorme prejuízo.

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A ofensa ao procedimento ordinário de adoção representa violação de menor significância quando considerado o princípio do melhor interesse da criança.
Processo em segredo

Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva

Retificação de registro após DNA negativo depende da inexistência de vínculo socioafetivo

Em outro julgado importante sobre família, a Terceira Turma levou em consideração as relações socioafetivas para negar o pedido de um homem que, após realizar exame de DNA e descobrir que não era o pai biológico de um adolescente, solicitou a retirada de seu nome do registro civil do filho. O colegiado concluiu que, apesar da ocorrência de vício de consentimento – pois o homem registrou a paternidade por acreditar haver vínculo biológico com a criança –, a retificação era inviável diante da prova do vínculo afetivo entre as partes.

"A divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o registro", destacou a relatora, ministra Nancy Andrighi.

Companhia aérea não é obrigada a aceitar animal de suporte emocional na cabine

Em maio, a Quarta Turma definiu que a companhia aérea não é obrigada a aceitar animal de suporte emocional na cabine das aeronaves. Para o colegiado, não cabe aplicar a esses animais a regulamentação legal pertinente aos cães-guia, utilizados no apoio a pessoas com deficiência visual.

Segundo a ministra Isabel Gallotti, na ausência de legislação específica, a empresa tem a liberdade para estabelecer os requisitos para que o animal possa viajar ao lado do seu tutor. "Não se tratando de animal de pequeno porte (até 10 kg), nem de cão-guia, e não havendo exceção aberta, espontaneamente, pela companhia aérea, todos os outros animais devem viajar no porão das aeronaves, dentro de caixas específicas feitas para esse tipo de transporte", disse a relatora.

Renúncia a bens da herança e herança digital entraram na pauta

Em maio, a Terceira Turma  decidiu que, dado o seu caráter indivisível e irrevogável, a renúncia à herança também abarca bens descobertos posteriormente. Para o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o renunciante perde os seus direitos hereditários de forma retroativa e definitiva, abrindo mão da totalidade dos bens já transferidos: "Perfeita a renúncia, é como se nunca tivesse sido herdeiro, não sendo, pois, beneficiário do direito sucessório".

No mês de setembro, o colegiado entendeu que o acesso à herança digital protegida por senha exige incidente processual próprio, que respeite os direitos de personalidade do autor da herança. O caso chegou ao STJ depois que uma inventariante tentou acessar, por meio ##de ofício## à Apple, o conteúdo de aparelhos eletrônicos deixados pelo falecido.

A ministra Nancy Andrighi ressaltou que o direito sucessório deve garantir que a impossibilidade de acesso aos bens digitais, devido à falta de senhas compartilhadas com os herdeiros, não prejudique a transmissão do patrimônio. No entanto, ela observou que nem todos os bens digitais são transmissíveis; aqueles que possam violar direitos de personalidade, como a intimidade e a vida privada do falecido ou de terceiros, devem ser preservados.

Novas teses sobre a impenhorabilidade do bem de família

Novos entendimentos sobre a proteção legal do bem de família também marcaram o primeiro semestre do tribunal. A Quarta Turma adotou a tese de que o único imóvel residencial do espólio, ocupado por herdeiros do falecido, continua protegido como bem de família e, por isso, não pode ser penhorado para garantir dívida deixada pelo autor da herança. Para o colegiado, a transmissão hereditária, por si só, não tem o efeito de afastar a natureza do bem de família, se mantidas as características de imóvel residencial próprio da entidade familiar.

De acordo com o ministro Antonio Carlos Ferreira, relator do recurso, os herdeiros respondem pelas dívidas do falecido dentro dos limites de suas partes na herança, mas isso não afasta a proteção do bem de família.

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Se os herdeiros se sub-rogam na posição jurídica do falecido, naturalmente também recebem as proteções legais que amparavam o autor da herança, entre elas a impenhorabilidade do bem de família.
REsp 2.111.839

Ministro Antonio Carlos Ferreira

A temática também esteve presente na pauta da Segunda Seção, que, sob o rito dos recursos repetitivos, fixou duas novas teses ao julgar o Tema 1.261. Na primeira, ficou definido que a exceção à impenhorabilidade do bem de família, nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade família, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em benefício da entidade familiar.

A segunda tese estabeleceu que, em relação ao ônus da prova: a) se o bem foi dado em garantia real por um dos sócios da pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo ao credor o ônus de comprovar que o débito da sociedade se reverteu em benefício da família; e b) caso os únicos sócios da pessoa jurídica sejam os titulares do imóvel hipotecado, a regra é a penhorabilidade do bem de família, competindo aos proprietários demonstrar que o débito da sociedade não se reverteu em benefício da família.

De acordo com o ministro Antonio Carlos Ferreira, o devedor que tenta excluir o bem da execução da dívida, após dá-lo como garantia, apresenta comportamento contraditório incompatível com o princípio da boa-fé. "Admitir que a defesa seja oposta em toda e qualquer situação implicaria o esvaziamento da própria garantia que constituiu o fundamento que conferia segurança jurídica e suporte econômico à contratação posterior", esclareceu o relator.

Vendedor de imóvel pode responder por obrigações posteriores à posse do comprador

Ainda no âmbito da Segunda Seção, em abril, o STJ confirmou a legitimidade passiva concorrente entre vendedor e comprador em ações de cobrança de taxas de condomínio referentes ao período posterior à ##imissão na posse## do imóvel pelo comprador, quando o contrato de compra e venda não foi registrado em cartório. Com esse entendimento, o colegiado adotou no Tema 886 teses compatíveis com o caráter propter rem da dívida condominial.

A ministra Isabel Gallotti, relatora, observou que o condomínio – credor de obrigação propter rem – não pode ficar sujeito à livre estipulação contratual de terceiros: "A obrigação propter rem nasce com a titularidade do direito real, não sendo passível de extinção por ato de vontade das partes eventualmente contratantes, pois a fonte da obrigação é o próprio direito real sobre a coisa".

Direito real de habitação pode ser estendido em favor de filho incapaz

Considerando que a proteção das vulnerabilidade é uma premissa do direito privado atual, a Terceira Turma decidiu, em outubro, que o direito real de habitação, assegurado por lei ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, pode ser estendido a filho incapaz.

"Deve-se permitir a ampliação do direito real de habitação em benefício do herdeiro com vulnerabilidade, a fim de garantir-lhe o direito social à moradia, privilegiando-se sua proteção e dignidade", afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi, para quem, em caso de eventual conflito entre o direito de propriedade dos herdeiros capazes e o direito de moradia do herdeiro incapaz, deve prevalecer o segundo.

Plano não tem que pagar canabidiol para uso domiciliar

Nancy Andrighi também foi relatora do recurso especial em que a Terceira Turma estabeleceu que o plano de saúde não tem de cobrir fornecimento de medicação à base de canabidiol destinada a uso domiciliar e não listada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo o colegiado, o inciso VI do artigo 10 da Lei 9.656/1998 dispõe que os medicamentos para tratamento domiciliar não são, em regra, de cobertura obrigatória, salvo exceções legais ou previsão em contrato ou norma regulamentar. 

A ministra lembrou que o STJ tem julgado no sentido de impor a cobertura de medicamento à base de canabidiol pelas operadoras. Apesar disso, apontou que a obrigação não subsiste quando se trata de uso domiciliar. Entretanto, ela ressaltou que a cobertura será obrigatória se o medicamento, embora de uso domiciliar, for administrado durante a internação domiciliar substitutiva da hospitalar ou se houver a necessidade de intervenção ou supervisão direta de profissional de saúde habilitado.

Fato gerador da multa cominatória é o descumprimento da ordem judicial

A Terceira Turma decidiu, em fevereiro, que o fato gerador relativo à multa cominatória (ou astreintes) é o descumprimento da decisão judicial que determinou a obrigação de fazer. Assim, a multa cominatória não substitui o cumprimento da obrigação principal nem se confunde com ela.

Conforme o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, trata-se de obrigações de origem e finalidade diversas, que não têm o mesmo fato gerador. Ele ponderou que a distinção tem implicações relevantes do ponto de vista processual, com capacidade de influir, por exemplo, no momento em que as astreintes podem ser cobradas e na sua inclusão na execução provisória.

"Diversamente da indenização, que objetiva recompor o dano causado à esfera jurídica da vítima, a multa cominatória objetiva a defesa da autoridade do próprio Estado-juiz", salientou o ministro.

Garantido o direito ao gênero neutro no registro civil

Em outro julgamento de bastante repercussão, a Terceira Turma confirmou, em maio, o compromisso do tribunal com a diversidade ao considerar que é possível retificar o registro civil para fazer constar o gênero neutro. Naquela oportunidade, o colegiado entendeu que o direito à autodeterminação de gênero e à identidade sexual está intimamente relacionado ao livre desenvolvimento da personalidade.

A ministra Nancy Andrighi destacou que, apesar de não existir legislação específica sobre o tema, não há razão jurídica para a distinção entre pessoas transgênero binárias – que já possuem o direito à alteração do registro civil, de masculino para feminino ou vice-versa – e não binárias, devendo prevalecer no registro a identidade autopercebida pelo indivíduo.

"Seria incongruente admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de transgeneridade binária e não binária, uma vez que em ambas as experiências há dissonância com o gênero que foi atribuído no nascimento, devendo prevalecer a identidade autopercebida, como reflexo da autonomia privada e expressão máxima da dignidade humana", refletiu a ministra.

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Todos que têm gênero não binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei.
rn Processo em segredo

Ministra Nancy Andrighi

Jogador do Free Fire teve conta encerrada por obter vantagem indevida

Em março, o tribunal manteve, por maioria, a suspensão permanente da conta de um usuário do jogo online Free Fire, acusado de obter vantagem indevida no ambiente do jogo, por meio do uso de software não autorizado. Segundo o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, cujo voto prevaleceu no julgamento, a exclusão da conta não impede que o usuário crie um novo perfil para continuar a usar o jogo. Conforme explicou, o que aconteceu não pode ser confundido com a chamada "desplataformização", que é o banimento da pessoa física da plataforma.

"Não há como se reconhecer nenhuma ilegalidade no comportamento da ora recorrida – provedora de aplicação da internet –, consistente em suspender permanentemente a conta de jogo de um usuário de seus serviços, em virtude da constatada prática de conduta expressamente vedada pelos termos de uso a que ele próprio aderiu", declarou o ministro.

Condenação bilionária é anulada por violar regras do julgamento estendido

Em novembro, o STJ anulou o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que havia condenado a Petrobras a pagar uma indenização de US$ 275 milhões. No caso, a Terceira Turma entendeu que houve irregularidade na composição do órgão julgador do tribunal estadual, por inobservância da técnica do julgamento estendido.

Segundo o relator, ministro Moura Ribeiro, "o vício na composição do colegiado em julgamento estendido não é somente um defeito formal, suprível pela instrumentalidade das formas, mas afeta diretamente o princípio do juiz natural e a garantia constitucional da imparcialidade, configurando erro processual que contamina todo o julgamento, afetando sua validade e eficácia".

O ministro destacou que vícios que afetam princípios essenciais e questões de ordem pública – como a formação irregular do colegiado – podem ser levantados em qualquer etapa do processo, especialmente em recursos que permitam o seu saneamento, como os embargos de declaração e o recurso especial.

Fonte: STJ